A Constituição Jurídica e Realidade Constitucional
Por: Daniel Daniel • 28/2/2018 • Artigo • 2.293 Palavras (10 Páginas) • 190 Visualizações
Constituição Jurídica e Realidade Constitucional
A distinção entre constituição jurídica e real foi introduzida no debate constitucional pelo sociólogo Ferdinand Lassalle em sua histórica conferência pronunciada em 1863 para intelectuais e operários da antiga Prussia[1]. No intuito de clarificar qual seria a sua “essência”, o autor propôs a análise da constituição em seu aspecto jurídico e sociológico, para então explicar porque ela se transforma.
Apreender a essência de um objeto é o primeiro passo para estabelecer o seu conceito. Quando um objeto é facilmente verificável (auto evidente) a ciência o denomina axioma, e diz-se que o seu conceito é primário. Ao se pensar, por exemplo, em um “ponto” (geometria) ou em “movimento” (mecânica) não se consegue estabelecer um conceito, apenas se pode ter uma idéia intuitiva do que sejam. Os axiomas são elementos lógicos próprios das ciências naturais, como a física, ou instrumental-racionais, como a matemática. Contudo, quando se adentra na seara das ciências humanas, depara-se com objetos de tal complexidade que, na ausência de conceito devidamente racionalizado (muitas vezes sob um esforço multifocal), torna-se difícil a sua correta compreensão. A própria idéia de “homem” é extremamente complexa. Ela pode ser entendida no seu sentido biológico, como espécie do gênero primata (homo sapiens); no sentido antropológico (anthropos); no sentido psicológico (psique ou anima); no sentido econômico (homo economicus); no sentido social (humanidade, coletividade, etc.), no sentido político (cidadão), no sentido jurídico (responsável, detentor de direitos e obrigações, pessoa física), etc.
Neste sentido o conceito de Constituição não foge a regra. Segundo o professor Inocêncio Mártires Coelho (2003), “em termos de conceito e peculiaridade da constituição a teoria do direito constitucional ainda está engatinhando, sem ter chegado sequer a uma opinião dominante”. De fato o debate sobre a natureza e a essência da Constituição é anterior a Lassale, e perpassa três séculos, sem contudo apresentar um conceito pacífico. Apesar de resgatar da doutrina diversas tentativas em se estabelecer um conceito geral e satisfatório de Constituição, e reconhecer o relativo insucesso desta empreitada, o professor ressalta:
“[...] a teoria da constituição, para ser útil à metodologia geral do direito constitucional, deve revelar-se como uma teoria da constituição constitucionalmente adequada, o que só se conseguirá explorando, corretamente, um novo círculo hermenêutico, consistente na interação e na interdependência entre teoria da constituição e experiência constitucional.”(idem, p 19)
São vários os conceitos de constituição porque são várias as abordagens sobre o tema. A sua complexidade permite que nos apropriemos, apenas, da teoria “constitucionalmente adequada”. Neste sentido, para os fins a que se propõe este trabalho, vamos nos restringir à discussão entre o conceito de constituição jurídica e constituição real.
Se não foi Lassalle o primeiro pensador a questionar sobre a essência da Constituição, certamente ele foi o grande “divisor de águas” do tema em questão. Sob um discurso em linguagem direta, clara e acessível propõe uma quebra de paradigma: reduz a constituição escrita a mera “folha de papel”[2]. Por meio de uma série de encadeamento lógico, deduz que a verdadeira força da Constituição é resultado da conformação das forças políticas que constituem o Estado – o que denomina de “fatores reais do poder”.[3] Dessa forma distingue a existência de dois enfoques sobre a Constituição: A constituição jurídica – texto constitucional a que denomina “folha de papel”, e a constituição real – que seria a “verdadeira”, posto que traduz a real composição de forças componentes de uma ordem social – o Estado.
Então, o autor estabelece o relacionamento entre as “duas constituições”:
“Juntam-se esses fatores reais do poder, os escrevemos em uma folha de papel e eles adquirem expressão escrita. A partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito – instituições jurídicas. Quem atentar contra eles atenta contra a lei, e, por conseguinte, é punido. (LASSALLE, 1988, p. 37)”
A essência da constituição escrita, neste caso, é a própria constituição real. A essência da constituição real, por sua vez, reside nos “fatores reais de poder”.[4] Neste sentido, são os fatores reais de poder a verdadeira fonte do direito constitucional; o que resta, portanto, é mera formalidade. Quando a norma escrita não corresponde à realidade fática, esta se encontra fadada ao fracasso.
O grande mérito de Lassalle, motivo pelo qual ainda hoje é admirado[5], foi ter percebido a importância da realidade constitucional, não apenas como fonte do poder constituinte originário, mas como condição de legitimidade e sobrevivência da constituição jurídica. Segundo José Afonso da Silva (1990, p. 39):
“O Sentido Jurídico de constituição não se obterá, se a apreciarmos desgarrada da totalidade da vida social, sem conexão com o conjunto da comunidade. Pois bem, certos modos de agir em sociedade transformam-se em condutas humanas valoradas historicamente e constituem-se em fundamento do existir comunitário, formando os elementos constitucionais do grupo social, que o constituinte intui e revela como preceitos normativos fundamentais: a Constituição.”
Até mesmo críticos à teoria de Lassalle admitem o seu êxito ao abordar a importância dos fatores de poder na conformação da Constituição. Assim disse Konrad Hesse (1991, p. 09): “Questões constitucionais não são, originariamente, questões jurídicas, mas sim questões políticas. Assim, ensinam-nos não apenas os políticos, mas também os juristas.”. Contudo, Hesse denuncia a falha de Lassalle ao reduzir a essência da constituição apenas à interação das forças de poder. Segundo o autor, não reconhecer a existência de outra força vital da constituição que não a realidade de poder, seria negar a existência da Constituição em sentido jurídico, e, portanto, do próprio Direito constitucional.[6]
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