DO PRIVADO AO PÚBLICO: A (IN) CRIMINARÃO DA INTOLERÂNCIA RELIGIOSA
Por: Bruna Ferreira • 22/9/2020 • Resenha • 1.304 Palavras (6 Páginas) • 160 Visualizações
Do privado ao público: a (in) criminação da intolerância religiosa
Segundo Misse, a acusação social permite retirar o conflito da intimidade para conquistar a esfera pública, revelando um modo de operar poderes nas relações sociais para atingir direta, ou indiretamente, os cursos de ação criminalizáveis. Pretende-se discutir o modo de como a Comissão tem atuado para combater a intolerância. Para isso antes é preciso distinguir conceitualmente a acusação da incriminação, conforme proposto por Michel Misse (1999). A incriminação retoma a “letra da lei” para jogar com a
ambivalência dos interesses entre o acusador e o acusado. Portanto, ela é
um controle de acusações sociais realizado pelos dispositivos que neutralizam os operadores de poder previstos em lei (flagrantes, indícios materiais, testemunhos, reconstituições técnicas e atuações nos tribunais) durante as interações acusatórias, de modo que representantes do acusado, do Estado e da sociedade recriem o conflito com vistas a construir a sujeição criminal. Para isso, é preciso que a polícia interprete o evento como uma transgressão à lei e o crimine, retirando-o da condição de ofensa moral, e o leve para a condição de transgressão à lei, por meio de dispositivos estatais de criminação, que iniciarão o processo de incriminação pela construção de um sujeito-autor e seu indiciamento.
A Comissão realiza suas reuniões com o objetivo de trazer para a esfera pública para identificar qual é o objeto da transgressão e quem são os transgressores. Em tais reuniões, a maioria das pessoas são praticantes do candomblé e da umbanda (que são as maiores vítimas do preconceito), mas há casos envolvendo católicos e muçulmanos que declaram ter sido vítimas de intolerância religiosa. Nessas reuniões os participantes contam publicamente suas histórias, que podem ser comentadas por todos os presentes, mas que são avaliadas pela Comissão para “identificar” se trata ou não de uma manifestação de intolerância religiosa (os critérios adotados, para tal não são explícitos). Essa “luta”, contra a intolerância religiosa é considerada uma ação “constitucional em defesa da democracia”, baseada na defesa da aplicação das leis brasileiras, especialmente, a Lei Cão (Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional), e de tratados internacionais assinados pelo governo brasileiro, mencionando-se geralmente o Pacto de San José da Costa Rica.
O debate dos casos é o ponto alto da reunião, quando se discutem o significado dos atos a que a vítima foi submetida e a sua possibilidade de enquadramento legal. Depois, a vítima é orientada sobre como proceder. O procedimento inicial é o de realizar um registro na própria Comissão, e encaminhar para a delegacia próxima ao local em que o fato ocorreu para confecção de um registro de ocorrência. O espaço da reunião também é utilizado por pessoas que já possuem um registro de ocorrência, mas que não concordaram com a tipificação dada pela Polícia Civil ou estão insatisfeitas com o atendimento recebido. Nessas circunstâncias, a Comissão também avalia se o caso se trata de uma intolerância religiosa, e passa a buscar uma nova tipificação mediante a intervenção do delegado, que tenta “sensibilizar” os outros delegados por meio de conversas informais, “para não afrontar sua autoridade”, e propor a “tipificação correta”:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor
etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa
(apud Silva, 2009).
De acordo com o delegado, a Lei Caó, apesar de ser um instrumento legal apropriado, ainda sofre forte resistência entre os policiais. A introdução de princípios democráticos, proposta primeiramente pelo pelo ex-governador Leonel Brizola, para regular os procedimentos policiais, foi mal recebido no interior das instituições policiais. Até hoje é comum
se ouvir que “os direitos humanos” atrapalham a atuação policial. O delegado também chama a atenção para o fato de que “a discriminação é um problema que resiste, persiste...”, pois é um problema que igualmente está presente na sociedade, não sendo exclusivo dos policiais.
Todos os casos acompanhados pela CCIR e classificados como intolerância religiosa foram encaminhados, seja para o registro de uma ocorrência na delegacia, seja para uma denúncia no Ministério Público (MP), ou ainda para o início de processos cíveis, como em casos de ação por danos morais. Alguns casos foram acompanhados juridicamente pela CCIR a partir da parceria com a ONG Projeto Legal. A Comissão atua, portanto, numa intermediação entre as vítimas e o Estado, motivada por interesses de intervir no processo, o que é considerado fundamental tendo em vista que, na maior parte dos casos, se a vítima vai direto à delegacia, não é atendida adequadamente, ou mesmo não é atendida, já que os policiais consideram que este tipo de conflito é algo de “menor importância”. Assim, ir à delegacia acompanhada por um advogado representa outro tipo de atendimento, pelo menos se tem a certeza de que o registro será realizado, o que é necessário para se dar início a um procedimento judicial. Já que é possível identificar problemas no atendimento e no acompanhamento dos casos, que demonstram como os policiais tendem a minimizar a intolerância religiosa, tratando-a como um problema de “menor importância”.
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