A Sombra
Por: Steve Harrington • 11/11/2017 • Artigo • 5.349 Palavras (22 Páginas) • 244 Visualizações
"Acorda".
Era o que a voz dizia.
"Anda logo, acorda".
A voz tão sinistra ficava cada vez mais alta, a ponto de tornar-se ensurdecedora.
"Vamos logo, seu pedaço de merda"- disse com raiva
Lerroy abriu os olhos. Uma coisa humanoide estava sobre o seu peito, apertando com cada vez mais força. Essa coisa se assemelhava com uma sombra esguia que conseguiu criar vida e sair andando por aí, sem nenhum dono para arrastá-la para lá e para cá em um dia ensolarado. Sua pele (se é que poderia chamar aquilo de pele) era de um tom profundo de negro, de ébano. A sombra sorria. Um sorriso branco, como em uma noite sem estrelas, onde você só poderia ver a Lua lá em cima, branca, brilhante e majestosa. Este sorriso era uma característica que entrava em contraste com o resto de seu corpo. Sua cabeça não possuía um único fio de cabelo: era oval, lisa e, dependendo do ângulo, era possível ver o reflexo do fino feixe de luz que entrava pela janela do quarto. Seus olhos eram a parte mais apavorante de todas. Olhos grandes, negros, tão negros como o resto do seu corpo. Olhos que ansiavam por algo, algo que poria medo no homem mais corajoso ou preocupasse o homem mais seguro. Seus olhos eram ousados; tinham a ousadia de quem acabara de descobrir que não possuía mais nada a perder. Além de tudo, eles eram muito observadores. Moviam-se rápido quando necessário e fixavam-se em tudo que lhe causava algum interesse ou curiosidade. Caso algo despertasse sua atenção, seus olhos paravam imediatamente. Começavam a analisar, avaliar, olhar, não apenas para a pessoa, mas para sua alma. Quando via alguma vulnerabilidade, seu sorriso passava a ser malicioso e cheio de expectativas, como se tivesse feito uma incrível descoberta.
Se a pior parte eram os olhos, a segunda pior era o jeito com que estava imóvel. A "sombra" estava sobre seu peito, agachada com os joelhos juntos a seu peito, como em posição fetal. Seus braços estavam ao redor de suas pernas, parecendo que temia que elas criassem vida e fugissem. Agarrava-as como alguém muito querido.
Porém, a sombra não tinha ninguém querido.
Seus pés enterravam-se no abdómen de Lerroy como garras sufocantes. A sombra não era muito alta ou forte, mas graças ao seu corpo esguio parecia alguns centímetros mais alta. Um soco bem dado no queixo poderia derrubá-la. Talvez. Porém, Lerroy não se atreveria. Até onde sabia, a tal sombra poderia ter garras verdadeiras no lugar de suas mãos, escondidas secretamente. Ela poderia arrancar seu braço fora tão facilmente quanto uma criança arrancaria o braço de uma boneca feita de pano.
Quando Lerroy Smith abriu seus olhos e viu aquela figura (enxergava mais ou menos naquele escuro todo de seu quarto, um pouco mais que sua silhueta), não se assustou. Estava acostumado a ver aquele ser todos os dias. Depois que seus pais morreram em um trágico acidente, a forma negra surgiu.
No começo, não passava de uma mera presença. Era uma presença que não incomodava à primeira vista. Porém, a presença crescia enquanto a angústia de Lerroy também. As lembranças estavam começando a pipocar em sua mente quando a sombra disse, em um tom calmo e sereno:
- O que foi, Lerroy? Você anda muito distraído, mais do que o normal. Eu me preocupo com você.
Algo naquela serenidade em seu tom de voz fez os pelos de sua nuca ouriçarem. Sua voz sugeria algo a mais. Parecia algo que estava a divertindo, algo irônico, mesmo sendo trágico. "Divertindo a porra de uma sombra", pensou Lerroy, achando cômico tal pensamento. Achava-o cômico apenas para disfarçar o nervosismo da situação.
A expressão de dúvida de Lerroy fez o sorriso da sombra morrer em seus lábios. Agora, caso o quarto estivesse totalmente na escuridão, sem aquele leve feixe de luz solar entrando, a única coisa possível de se enxergar seriam seus olhos. Seus terríveis olhos. Tais olhos flutuariam nessa escuridão. Às vezes, Lerroy pensava que a sombra se alimentava com seus olhos, e não a boca.
Lerroy tentou respirar fundo para afastar de seu coração o medo crescente, mas seus pulmões falharam com a pressão daquela maldita coisa. Ela parecia muito confortável em seu peito e do jeito que estava. Quando seus pulmões não conseguiram inspirar o suficiente, deu uma leve arfada meio misturada com suspiro de cansaço e uma tosse ameaçava subir até sua boca. Ele segurou a tosse antes mesmo de seguir o caminho até a boca pela garganta e ficou ali, com medo, olhando aquele ser que parecia ter sido retirado de uma obra de suspense de Stephen King.
Depois de se acostumar com a sombra apoiada a seus ombros, havia muito tempo que não sentia medo dela. Mas nunca tinha visto-a deixar de sorrir seu sorriso que rasgava a sua face tão abruptamente. Aquilo o apavorou mais do que esperava.
Do mesmo modo com que a sombra parou de sorrir de repente, ela soltou uma gargalhada seca. Seu riso era estridente e possuía a intenção de apavorar Lerroy mais ainda.
- Por que você fica tão sério? - ela disse enquanto voltava a esbanjar seu sorriso e aproximava seu rosto até o de Lerroy - Eu lhe assusto tanto assim mesmo após todo esse tempo? Talvez você queira me tirar de cima de você e levantar um pouco.
A sombra dizia isso em um tom brincalhão. Seus olhos fitavam-no com gozo e júbilo, com um desejo insaciante. Podia sentir em seu rosto a respiração pesada daquela coisa. O seu hálito não tinha um cheiro normal. Não era o cheiro de alguém que dormiu muitas horas ao dia e não escovou os dentes assim que acordou. Aquele hálito cheirava a ódio, sofrimento, desespero e, acima de tudo, morte. A mais simples das mortes. Lerroy não sabia como um cheiro poderia o relembrar de emoções, mas esse cheiro o fazia. Ao mesmo tempo, sentia algo como uma foça, com algum grande animal morto, afogado, ali, dentro da boca da coisa, se decompondo.
Novamente, as lembranças dos dias intermináveis que passou carregando aquele fardo negro começaram a fluir, como uma torneira que pinga lentamente na pia do banheiro em uma madrugada. Ploc, ploc, ploc. Porém, sempre que Lerroy tentava girar a válvula e abrir a torneira, para deixar que suas lembranças pudessem fluir livremente, a sombra, de alguma maneira, vinha e fechava com força. Tanta força que era quase impossível girá-la novamente. A torneira simplesmente para de pingar e as gotas com suas lembranças deixavam de fluir para o cérebro.
A coisa então pronunciou:
- Você também está meio quieto hoje - enquanto seus olhos não piscavam e os seus lábios moviam-se roboticamente. Então, Lerroy ouviu-se dizer sem nem ter noção que diria algo do tipo:
- É meio difícil falar com algo explodindo meu peito.
Não sabia de onde tinha tirado aquela ousadia. Pensou que o sorriso da sombra morreria em seus lábios de novo, seus olhos iriam arregalar-se e devorar sua alma; que entraria em uma fúria arrebatadora e suas garras ocultas como a de um gato pulariam para fora e arrancariam sua cabeça para fora de seu corpo. Um leve pânico instaurou-se em sua mente em questão de segundos. Mesmo assim, sentiu um pouco de triunfo e um sentimento bom que qualquer um que já experimentou de um pouco de ousadia sentiria.
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