Diversidade Religiosa na Perspectiva Indígena
Por: Cristiano Corte Restitutti • 31/8/2016 • Artigo • 4.971 Palavras (20 Páginas) • 591 Visualizações
Diversidade religiosa na perspectiva indígena
Lori Altmann[1]
A educação, num contexto de diversidade de povos, culturas e também de religiões, não é algo novo em nosso país, mas a preocupação em perceber esta diversidade como uma riqueza a ser identificada, interpretada e valorizada é relativamente recente.
Os conhecimentos sobre a “História e Cultura Afro-brasileira e Indígena” e sobre as dimensões étnico-culturais-religiosas do conhecimento passam a fazer parte do currículo oficial da rede de ensino (pública e privada), de maneira mais sistemática e formal, com a exigência de serem desenvolvidos nas escolas a partir da Lei Federal no. 11.465, de março de 2008.
Este texto apontará para princípios básicos que orientem a inclusão da temática da questão indígena na disciplina de Ensino Religioso, mas também em outras disciplinas como: História, Geografia, Língua Portuguesa, Sociologia, Filosofia, Biologia, Educação Artística e muitas outras. Ao mesmo tempo, apresentará alguns exemplos do ponto de vista indígena, principalmente no que diz respeito as suas cosmovisões e tradições religiosas.
1. Olhar a partir de outra perspectiva religiosa[2]
As tradições religiosas, na sua multiplicidade, apresentam diferentes pontos de vista a respeito da relação com o transcendente. Ao buscarmos este contato com as culturas indígenas precisamos fazer este exercício de olhar a partir de outras perspectivas religiosas. É importante ressaltar que só nos conhecemos e nos encontramos conosco mesmos, conosco mesmas através do outro, da outra, ou seja, através da alteridade.
O conhecimento adequado de uma religião indígena, entendida como um conhecimento construído, transmitido e transformado socialmente na relação entre pessoas e o sobrenatural ou transcendente, supõe o conhecimento da língua e da cultura. Por ser religião de tradição oral, boa parte do que se aprende não ocorre em processo formal de estudo, mas no contato, na convivência e na participação de atividades cotidianas. O aprendizado ocorre à medida que se vai observando, conferindo e perguntando, muito na linha do método etnográfico desenvolvido pelo antropólogo Bronislaw Malinowski (1984).
Um grande desafio, em relação às religiões indígenas, diz respeito a apreender o mundo mítico, ou melhor, o universo simbólico indígena expresso nas narrativas, nos rituais e nos cantos. Trata-se de apreender a lógica deste mundo no qual, através da mediação de especialistas, são estabelecidas relações com espíritos que geralmente se localizam no interior da floresta ou nas profundezas da terra.
Historicamente, a cultura ocidental e cristã viu as outras tradições religiosas a partir de seu ponto de vista. A aproximação com outras tradições religiosas exige, no entanto, um processo de reeducação, através do qual é preciso se colocar no mundo a partir do ponto de vista do outro. Passa a ser uma descoberta a partir de dentro e não a partir de fora daquela cultura e religião. Isso exige uma atitude de respeito à diferença, num sentido ecumênico amplo ou macro-ecumênico imprescindível num contexto de pluralismo religioso.
Num primeiro momento é necessário um "silêncio" mediante o qual a palavra do outro povo, a palavra da outra cultura possa ser escutada, pois a escuta torna-se a condição para o diálogo. Urge que este silêncio e esta escuta ocorram dentro de um processo de convivência, que, por sua vez, possibilita um diálogo frutífero, mediante o qual, aos poucos, vai surgindo o conhecimento mútuo e a superação das desconfianças.
As religiões indígenas estão intimamente relacionadas com a terra e com suas reais condições de sobrevivência física e cultural. O respeito a sua religião passa pelo compromisso com suas lutas bem concretas e por sua busca por qualidade de vida. Os povos indígenas não precisam de misericórdia, mas de justiça. Não precisam de esmola, mas de devolução com juros de tudo aquilo que lhes foi roubado. Esta justiça histórica apresenta-se como uma exigência para o restabelecimento de sua dignidade. No entanto, não existe autodeterminação e autonomia sem a superação de toda forma de dependência. Isso só acontecerá com a mudança estrutural da própria sociedade brasileira como um todo. Dentro do estado brasileiro atual os povos indígenas permanecem dependentes e explorados, enquanto suas culturas e cosmovisões encontram-se ameaçadas.
Uma outra relação com estes povos indígenas, permeável à cultura e às demandas de suas comunidades, pode vir a contribuir para a sua sobrevivência física e cultural, preservando uma relação o mais possível simétrica e digna. Cito aqui o Pastor Walter Sass, que descrevendo a sua experiência entre os Kulina do vale do rio Juruá, afirma:
Cada vez aprendo mais com este povo que sabe do mistério da vida, do essencial [...] do respeito à natureza, à criança, ao convívio com outros. Não tenho uma visão romântica. Os madiha se chamam gente, como nós. Eles sabem das suas falhas. Os mitos narram isto. Mas a história foi violenta demais para este povo e ainda é. Um verdadeiro encontro das duas religiões, das duas manifestações de dar sentido a este mundo se concretizará no momento em que nós deixarmos muitos elementos destrutivos da nossa cultura (que não são cristãos) caírem. Eu estou no meio deste diálogo, aprendendo, escutando, descobrindo, em longas meditações nas viagens e na aldeia, a mensagem Daquele que está ao lado dos que lutam pela vida.[3]
O Ensino Religioso, como um processo comunicativo crítico, exige uma reinterpretação da fé cristã e da cultura ocidental para uma verdadeira compreensão das religiões indígenas. A aproximação com o “outro”, o conhecimento e a valorização de sua cultura e de seu modo de ser, precisa ocorrer num contexto de diálogo respeitoso. Esta seria uma tentativa não-etnocêntrica de se relacionar com povos e comunidades dominadas e que lutam por espaços de manifestação autônoma.
A escola é também um espaço privilegiado para uma revisão da História e uma busca por mudança de mentalidade por parte de alunos e alunas no que diz respeito às populações indígenas que vivem em nosso país. Para isso precisamos considerar que existem aí implicadas relações assimétricas em termos culturais, sociais e econômicos e que o diálogo interreligioso não está isento destas relações de poder. Mesmo assim, vale a pena tentar, porque ao assumir uma aproximação aberta e permeável à cultura do outro, não se permanece mais o mesmo, a mesma. Esta é a essência do diálogo.
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