A Tradução Comentada
Por: LotaMag • 13/7/2017 • Ensaio • 2.778 Palavras (12 Páginas) • 226 Visualizações
Tradução Comentada
Excerto selecionado do conto “Cyprus Avenue” de Lucy Caldwell
“Avenida do Chipre”
O mês de Dezembro sempre foi difícil, mas este ano será o Dezembro mais difícil de sempre. Vais-te sentir a lutar para aguentar o seu peso; vais querer, com mais força do que nunca, que passe de vez, só desta vez, só este ano; e vais-te ver ao telefone, a dizer à tua mãe, É possível que não consiga ir a casa. A última palavra vai ficar a pesar-te no peito e vais ouvir a tua mãe a ouvi-la, vais sentir o teu coração a bater. A tua mãe vai clarear a voz e não dizer nada, vai esperar que digas, Os voos estão todos cheios e, a minha patroa...
Mas as desculpas tão persuasivas que ensaiaste na cabeça,[a] morrem, antes de as dizeres. Vais imagina-la, parada no meio do corredor arejado, a usar o seu colete de penas e o cachecol, porque mesmo com o aquecimento central no máximo ela sente demais o frio nos dias que correm, com o seu telemóvel com a capa cor-de-rosa de verniz brilhante e o aspirador, ou o cesto da roupa, ou o que quer que fosse que estava a fazer quando ligaste, abandonado aos seus pés. Mãe... vais dizer, e ela vai dizer, Oh, não faz mal, eu compreendo. E então vais acabar a chamada dizendo, Vou agora mesmo ao site, e vais desligar o telefone e maldizer a tua mãe, maldizer-te a ti própria e vais acabar no terminal de partidas a 23 de Dezembro como sempre, à espera que a companhia área infinitamente atrasada e supostamente low-cost, anuncie o embarque para Belfast.
O voo para Belfast é sempre empurrado para uma ponta longínqua do aeroporto, uma ressaca de quando os seus passageiros precisavam de ser encurralados, observados. É um voo de exilados: até pode haver uns quantos miúdos ingleses, ou meio-ingleses, a visitar pelo Natal os pais e familiares da Irlanda do Norte; mas, a maioria, são aqueles que partiram de vez, todos a viajar no último momento possível, a maioria a sentirem-se culpados, alguns lamechas do álcool, muito poucos a sentirem-se felizes.
Quando o pessoal do embarque, com um ar incomodado nas suas túnicas baratas e chapéus de Pai Natal espampanantes, começa a distribuir cupões para comida e bebidas, já o voo está quase três horas atrasado. Por essa altura, já pousaste o livro há um bocado e ficaste a analisar caras, a ouvir. É estranho como os teus ouvidos se adaptam tão rapidamente, como de repente, são as vozes inglesas do pessoal do embarque que soam demasiado barulhentas e agressivas, tão confiantes e, no entanto, tão deslocadas. Perdeste o sotaque há anos e muito de propósito, mas quando aceitas os cupões sentes as vogais a apertar, as inflexões na tua voz a voltarem lentamente. Uma de vós, uma de nós, uma deles.
Só há um bar nesta porta de embarque e está sempre abarrotado; suado e mal-humorado, como os passageiros com bagagem de mão a mais, a afundar canecas de cerveja e a emborcar grandes copos de vinho. Quando finalmente chegas ao balcão vês-te esborrachada contra o jovem homem indiano: reparaste nele antes, em pé à janela que dá para a pista, alto e silencioso, sem se mexer, apenas a olhar para as luzes dos aviões no pavimento molhado, como se estivesse num mundo completamente diferente. Desculpa, dirás no momento em que vais contra ele, e ele vai-te sorrir e dizer, num sotaque tão típico de Belfast como possível, Não te preocupes, na boa. E num instante, ele vai ver a tua surpresa com o seu sotaque e tu vais vê-lo a vê-la e ele vai sorrir novamente, com um sorriso mais pequeno e mais fechado desta vez.
Se faz favor? está-lhe o empregado a dizer. Se faz favor, senhor?
Uma caneca de Guinness, por favor, ele dirá. Pela expressão miserável na cara do empregado, é já a centésima que o pobre homem teve de explicar que os cupões não são convertíveis em álcool.
Nesse caso, o que é que tem? vais-te ouvir perguntar, um pouco mais alto e mais insolente do que o necessário, como que a compensar pelo momento em que inadvertidamente te traíste (a ti e a eles, a nós). O homem de Belfast vai olhar para ti, surpreendido e depois vai rir e vão ficar os dois a sorrir um para o outro, enquanto o empregado enuncia as bebidas possíveis, terminando com uma litania de batatas fritas com sal, de cebola e queijo ou sal e vinagre, amendoins ou uns snacks de marisco com sabor a bacon. Os snacks de marisco com sabor a bacon! O homem de Belfast vai gritar, com uma incredulidade gozona. Já não comia isto desde criança. Dê-nos isto tudo em snacks de marisco com sabor a bacon, e vai pegar nos teus cupões e estende-los, juntamente com os seus, para o empregado que não está a achar piada e tu vais desatar a rir.
Com a pequena apresentação feita desajeitadamente, ele vai oferecer-se para te pagar uma bebida. Diz que sim. Aliás, nem digas sim, apenas não digas não. Hesita, isso será suficiente.
Contra o corrimão curvado de latão, no canto do bar, tu e Nirupam – é esse o seu nome, Nirupam Choudhury – vão fazer um brinde e começar a conversinha do “quem é que nós temos em comum”. E vão descobrir que ele cresceu a apenas umas ruas de ti, numa das grandes casas na Avenida do Chipre e até que, durante um breve período, andaram na mesma escola primária.
De repente, vai te surgir uma memória: o rapaz monhé, magrinho e envergonhado e as duas irmãs chinocas gordas a serem levados para o palco, para celebrar o Ano Novo Chinês, e vais-te sentir a morrer de vergonha por ele, pela escola, por aquelas palavras; e ele vai ver tudo isso na tua cara e sorrir, com aquele triste sorriso fechado novamente, e dirá, Yup, era eu.
Lamento imenso, dirás, e ele vai dar uma golada na cerveja e dizer, Olha, não te preocupes com isso.
No curto silêncio que se segue, vais perceber que ele estava três anos à tua frente e dar por ti já a dizer: Não te lembras da minha irmã? A Janey, dirás. Ela chamava-se Janey.
Ele vai começar por abanar a cabeça e depois parar, perceber que usaste o verbo no passado e dizer, Não era a Janey que morreu no sexto ano, pois não? E depois será a sua vez de dizer, Lamento imenso, e tu vais dizer, como sempre dizes, Não faz mal, e depois dirás, Só tinha seis anos quando a Janey morreu, nem sequer eu me lembro dela, não muito bem pelo menos.
Ele vai desviar o olhar e dizer, O meu pai e a minha irmã bebé morreram num acidente de carro no ano a seguir, e vais perceber que isto também, soa vagamente familiar. Talvez tenha havido uma assembleia escolar especial, como para a Janey, e toda a turma tenha assinado um cartão. Ele era um cirurgião, dirá Nirupam, no Hospital Royal Victoria, e depois de ele morrer, tive esperança que a minha mãe se mudasse, que voltássemos para a Inglaterra, mas ela nunca o fez.
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