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Fetichismo

Por:   •  20/4/2016  •  Artigo  •  1.867 Palavras (8 Páginas)  •  179 Visualizações

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Entre fetichismo e sobrevivência: o artigo científico é uma mercadoria acadêmica? Between fetishism and survival: are scientific articles a form of academic merchandise? 1 Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. 2 Departamento de Enfermería Comunitaria, Medicina Preventiva y Salud Pública e Historia de la Ciencia, Universidad de Alicante, Alicante, España. 3 Red de Malnutrición en Iberoamérica-CYTED (Programa Iberoamericano de Ciencia y Tecnología para el Desarrollo). Correspondência L. D. Castiel Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil. luis.castiel@ensp.fiocruz.br Luis David Castiel 1 Javier Sanz-Valero 2 Red MeI-CYTED 3 Abstract This article discusses the possible meanings of the intense prevailing concern in academic circles over the notion of research productivity, as reflected in an excess number of articles published in various scientific journals. The numerical accounting of articles published by researchers in scientific journals with renowned academic status serves to legitimize academics in their fields of work, in various ways. In this sense, we suggest that scientific articles take on aspects of merchandise-as-fetish, according to Marx’s theory of use-value and exchange-value and Benjamin’s exposure value. Meanwhile, the biological notions of selection and evolution are used as metaphorical elements in “bibliographic Darwinism”. There are references as to the possibility many of the prevailing bibliometric concerns serve as instruments for econometric analysis, especially to orient and enhance cost-effectiveness analysis in research investments of various orders and types, from the point of view of their economic return. Journal Article; Periodicals; Scientific Communication and Diffusion Introdução Há indicadores bibliométricos que sinalizam para mudanças dramáticas no panorama da pesquisa científica nos últimos 10-15 anos. Se, por um lado, mais de 70% da produção mundial pertence ao eixo Estados Unidos/Comunidade Européia/Japão, há crescimentos espetaculares em alguns países em especial (como China e Irlanda, os mais significativos) e declínio em outros (Grã- Bretanha). Na América Latina, dados recentes mostram que a produção da ciência brasileira se destaca em seu crescimento de 8% na repartição do produto anual em termos mundiais e ocupa o 17o lugar na lista de países mais ativos. Talvez mais significativo seja o fato de ocupar o 9o lugar entre os países que apresentam maior dinamismo em termos percentuais de crescimento entre os anos 1991 a 2003, adiante da Espanha (11o) e onde se destacam sobremaneira Coréia do Sul, Turquia e Singapura 1. Sem dúvida, as análises acima mencionadas merecem a devida atenção quando se trata de descrever e comparar a produção científica e seus fluxos em múltiplos níveis de abrangência, tanto em termos globais como locais. Porém, tais dados necessitam de ser contextualizados em função não apenas de aspectos bibliométricos regionais e nacionais. É importante também levar em conta especificidades de caráter sóciohistórico no desenvolvimento das disciplinas e dos campos de produção de conhecimento em FÓRUM FORUM 3042 Castiel LD et al. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(12):3041-3050, dez, 2007 relação às transformações estruturais em aspectos políticos e econômicos que ocorreram nas últimas décadas. Inegavelmente, a adoção de recursos informáticos e a existência da Internet viabilizaram uma impressionante difusão e uma concomitante ampliação das possibilidades de acesso à produção acadêmica. Com esses recursos, como se sabe, é cada vez mais acessível pesquisar e obter fontes bibliográficas, utilizar bancos de informa- ções, analisar dados e redigir artigos científicos. Em geral, convive-se com a impressão de haver se tornado bem menos atribulada a produção de projetos e, caso sejam obtidos financiamentos, a realização de pesquisas. Mas, esta maior disponibilidade investigatória não ocorre sem efeitos colaterais indesejados. Há um aumento considerável na disputa por recursos para a pesquisa e diminuição de recursos públicos para tanto 2. Um dos requisitos para aceder aos financiamentos é a demonstração da produtividade dos grupos de pesquisa, sobretudo em termos de publicação nos veículos acadêmicos de melhor reputação nos respectivos campos. Assim, a competição se estende à luta ferrenha entre artigos que buscam a ocupação de espaços editoriais – o escoadouro almejado para os resultados dos esforços investigativos, mas também da necessidade de manutenção das esferas de prestígio e influência 2. Não é despropositada a impressão de haverse desencadeado um processo aparentemente irreversível e, talvez, no limite, incontrolável. Isso parece estar se tornando algo cada vez mais incidente nos meios acadêmicos, em geral, e no campo da pesquisa em saúde pública em particular 3. A perspectiva aqui adotada se dirige à análise dos possíveis significados de um fenômeno que se manifesta neste contexto de ampliação na pesquisa científica e da intensa contabilização numérica de artigos publicados por investigadores em revistas científicas de reconhecido status acadêmico para se legitimarem como profissionais nos seus campos de atuação. Com a enorme ampliação do número de revistas e artigos, não à-toa começa-se a conviver com a sensação de haver algo de desarrazoado diante desta cornucópia de artigos científicos. Ela se dá, a um só tempo, não só em quantidades enormes e de forma acelerada, mas também apresentando, embutida em sua proliferação, uma perspectiva duvidosa quanto à avaliação da respectiva fertilidade nos processos de constru- ção do conhecimento em saúde pública 4.Tal panorama não parece se refletir proporcionalmente em melhorias correspondentes nos quadros sanitários – como se houvesse uma desmesurada produção acadêmica que mal altera a precariedade da situação em saúde de muitos rincões deste mundo. Apesar de a literatura especializada ser mais acessível, é cada vez mais laborioso ler-se o que é publicado nos correspondentes âmbitos de interesse. O ideal da atualização nas respectivas áreas parece ter se tornado algo cada vez mais difícil de ser alcançado no dia a dia. Assim, existem (e existirão) muitos artigos que jamais serão lidos. Este dado é difícil de ser estimado. Há, todavia, estimativas de que cerca de 50% dos trabalhos em ciências sociais publicados jamais serão citados 5. Há termos críticos, até jocosos, que designam esta ordem de questões éticas diante do fenô- meno de proliferação na literatura científica. Alguns mais conhecidos, como “ciência-salame”: uma pesquisa é fatiada em unidades menores publicáveis para se tornarem vários artigos distribuídos em diferentes revistas 6. Outros menos comuns como “publicacionismo” 7 e “produtivite” 8 começam a ser utilizados para designar tal quadro. Em outras palavras: um mesmo conteúdo pode aparecer em vários artigos, após receber pequenas mudanças cosméticas. A autocitação pode constituir-se no chamado “autoplágio” 9. Já há revistas que solicitam na declaração que se costuma fazer na entrega dos originais um item especificando não se tratar de publicação redundante 10. Outro aspecto importante seria se o artigo traz algo ao conhecimento ou à discussão científica, isto é, se é pertinente, relevante e “revelante” 11. As questões éticas na pesquisa científica não são de forma alguma negligenciáveis. Em termos mais específicos, pode haver vários tipos de má-conduta e fraudes no meio científico, como o gerenciamento dos protocolos, amostragens e dos dados em geral 12. Ademais, há um crescente aumento de autores por artigo, significando mais do que o suposto aumento dos integrantes dos grupos de pesquisa, mas sim a possível prática de “escambo autoral” (meu nome no teu artigo, teu nome no meu artigo etc.) 13. A própria presença do plágio se torna algo mais praticável e difícil de ser percebido – ainda que sejam “microplágios” –, viabilizados pela cópia de trechos de textos disponíveis na Internet 14. Não parece ser incomum a prática de autores, ao utilizarem uma determinada referência consultada e indicada no próprio artigo destes autores, também citarem outra(s) referência(s) presente no artigo citado como citação de seu próprio artigo, sem haver a consulta específica de tal referência. Sem dúvidas, a tarefa de editar revistas científicas se tornou bastante comple- O ARTIGO CIENTÍFICO É UMA MERCADORIA ACADÊMICA? 3043 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(12):3041-3050, dez, 2007 xa ao envolver intrincados e múltiplos aspectos éticos. Cabe ainda assinalarque, aoladodo“publicacionismo”, convive-se com outro fenômeno acadêmico: o “citacionismo” – a grande importância do ato de citar outros autores e de ser-se citado em artigos –, que é em grande parte um efeito do êxito dos indicadores de impacto desenvolvidos pelo Institute for Scientific Information/ Thomson Scientific (ISI). Essa excessiva preocupação tornou-se, de certa forma, representativa do espírito de “avaliações rápidas” de nossos tempos modalizados na ambiência acadêmica. Aliás, a etimologia dos adjetivos latinos “citus, cita, citum” é emblemática ao indicar “posto em movimento”, “vivo”, “pronto”, “rápido”, “ligeiro”. É preciso produzir artigos que gerem citações, ou seja, que sejam publicados e tenham vitalidade para estarem presentes nas outras publicações. II A ciência é, sem dúvidas, uma tecnologia intelectual capaz tanto de gerar excelentes entendimentos e interpretações acerca do mundo, como de proporcionar intervenções e criação de objetos técnicos de maneira a corresponder a muitos projetos humanos; contudo, conforme mencionado, surge um problema sério com a ideologia da cientificidade. Vale dizer, em termos bastante abreviados, quando se considera que a ciência é o melhor modelo (em casos mais radicais, é considerada o único) para se compreender e representar o mundo e os homens 15. A força da ciência provém do fato de que seus protocolos, instrumentos e dispositivos de análise simplificam suficientemente a “realidade” com a finalidade estudá-la e atuar sobre ela. E, como presenciamos ao nosso redor, isso costuma acontecer de modo bastante eficaz. Mas o que está sob o guarda-chuva chamado ciência também pode cometer abusos de saber. Por exemplo, quando se pretende deduzir normas de conduta baseadas em unívocas evidências (pesquisas) científicas. Ou, então, reduzir problemas somente à sua tradução em termos técnicos 15. Latour abordou a suposta transição de uma cultura da “ciência” rumo à cultura da “investiga- ção”. Entende-se a ciência como uma atividade fria, direta e objetiva e a investigação, por sua vez, seria acalorada, arriscada, geradora de outras implicações. Se a ciência põe um final aos caprichos das disputas humanas, a investigação cria controvérsias. Como mencionado, a ciência opera sob o manto da idéia de objetividade, tentando escapar tanto quanto seja possível dos supostos grilhões da ideologia, das paixões e das emoções; já a investigação é nutrida de todos esses aspectos para gerar perguntas de investigação menos afastadas de nós próprios. Podemos pensar que essas duas perspectivas básicas coexistem em graus variados na atividade científica atual 16. Levando adiante tal linha de raciocínio, um olhar científico puro é algo abstrato – como se aquilo que essencialmente definisse a atividade científica fosse a busca fidedigna de dados e a correspondente aplicação correta de protocolos, desenhos de investigação e análise dos resultados. Já existiu um imaginário social no qual o cientista era antes de tudo um benfeitor da humanidade 17 (este era o título de um livro lan- çado na década de 1940 para crianças com biografias de renomados cientistas) com qualidades nobres, entre outras. Por exemplo: desinteresse por coisas materiais em nível pessoal 18, altruísmo. Tanto que em relação ao artigo científico já houve momentos poucas décadas atrás em que o cientista se comportaria como um doador ao entregar seus artigos a uma revista, e seria essa doação que o constituiria como cientista. Como retribuição receberia prestígio, como diz Hagstrom. A organização social da ciência consistiria em uma troca de reconhecimento social por informação 19. Parece haver, no entanto, indícios cada vez mais fortes de que muito desse imaginá- rio estaria progressivamente se transformando.

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